Dá-lhe Brabo:
O projeto de esperar a outra vida me cansou, e resolvi abraçar esta. Gostar da simples existência, amar a vida e querê-la de todo jeito, mas do jeito em que se possa gozá-la melhor. [...] E comecei a achar um banho de chuva melhor do que a missa; a reunião inútil com meus amigos na praça, melhor do que a falsa utilidade da reunião de catequese; uma cerveja a sós, escutando Chico Buarque ou Mônica Salmaso ou João Sebastião Bach, me caíam bem mais em conta para um prazer do que a palestra que me havia sido incumbida proferir no ECC (sim, eu era o menino de ouro, o protegido prodígio da Diocese, porque aos 17 anos já ministrava cursos de teologia, e palestras doutrinárias em todo tipo de reunião). Entendi, desse modo, como era maior a tal da Teologia da Libertação, maior do que a paroquialização das CEB’s e do que a cooptação do discurso “libertador” por amplos setores das igrejas. Não era possível promover “justiça social”, lutar pela “democracia popular”, conquistar “direitos sociais”, enfim, não era possível mudar o mundo, se não se mudasse o criadouro de mundos que é a religião, ou melhor, a religiosidade. De nada adianta trocar os mandatários se nunca muda a relação que constitui por dentro o poder, e que baseia-se, obviamente, na “metafísica” subjacente a tudo.
Para ser como ele é preciso esquecê-lo.
[...] Ieshua era pra mim, de verdade, um Mestre nisso. Mas o problema é que não sabia a dosagem de seu esquecimento. Sabia que lembrar-se muito dele atrapalharia tudo, porque é preciso ser como ele e não para ele. E, para ser como ele, é preciso esquecê-lo, docemente esquecê-lo. Esquecê-lo é colocá-lo além da memória, é encarná-lo. Como as pernas e os braços que a gente tem e não se lembra, desde que não haja problemas com isso. Lembrá-lo traz sempre à tona aquelas ridículas desencarnações dele, as imagens de um modelo hollyoodiano loiro, sem força na fala, sem dramaticidade nos gestos, com uma falsa simplicidade, que denota mais os riquefifes de um nobre barroco do que o sorriso largo e companheiro de um artesão do interior.
O que, talvez, ele dissera, era verdade: ele estaria conosco, mas não da forma pessoalmente espiritual como quiseram as Instituições, mas da forma sublime que ele denominou de espírito santo - prefiro escrever com minúsculas, porque é menos hierárquico: isto é, fazendo-nos esquecer dele, para nos encontrarmos com a vida e com a sua realidade fantasiosa. Dando-nos, a qualquer um que o queira, o nosso espírito de volta, isto é, a carne com a saudade e a fantasia que ela traz.
Rondinelly Gomes Medeiros,
de seu posto no sertão paraibano, entre São Mamede e Patos,
em e-mail que mandou-me semana passada
Via Bacia das Almas