CONSULTO o calendário: hoje é sexta-feira da paixão, 10 de abril. Me deu vontade de escrever de um jeito diferente, fazendo de conta que hoje é terça-feira da semana que vem. Se me disserem que isso não é possível contesto dizendo que na literatura tudo é possível... E assim, assentado diante do computador, corrijo a data: é o dia 14, dia que hoje ainda não existe.
O hoje já passou. A Sexta-Feira da Paixão ficou para trás. Isso, segundo a medição dos calendários escritos. Mas não segundo os calendários da alma. Os calendários da alma não têm nem antes nem depois. Na alma, o tempo é sempre presente. A alma vive chamando de volta um tempo que já passou: isso tem o nome de saudade...
A alma é atrasada. Não quer progresso. Não quer ir para o futuro. O que ela deseja mesmo é voltar para o passado porque é no passado que moram os objetos que ela amou e perdeu. A alma navega sempre ao contrário, na direção do amor.
Sexta-Feira da Paixão faz voltar o cheiro dos pobres que não tomavam banho. É um cheiro inconfundível, comovente, diferente do cheiro dos ricos que não tomam banho. O cheiro de não tomar banho dos pobres é reverente. E é por isso que os pobres vão à procissão vestidos com ele. Já o cheiro de não tomar banho dos ricos fede. Faz pensar em sovaco.
O cheiro dos pobres que não tomavam banho tem um lugar privilegiado nas memórias que escrevi no livro "O sapo que queria ser príncipe". Se o título o intriga, eu explico: o sapo era eu, menino de roça desajeitado... Marcel Proust deveria sofrer de uma saudade imensa para escrever um livro tão comprido sobre o mistério da procura do tempo que se perdeu, sabendo que as águas de um rio não voltam atrás.
Ou voltam? O desenhista Escher achava que sim e até fez um desenho em que as águas voltavam atrás, subiam um morro e viravam cachoeira. E o escritor sagrado era de opinião igual e escreveu "lança o teu pão sobre as águas porque depois de muitos dias o encontrarás" (Eclesiastes 11.1 ). As águas do rio da alma são circulares. O que se pensa perdido volta. E é pra isso que existe Deus, pra fazer as águas do rio do tempo voltarem e assim nos curar da saudade...
Hoje, Sexta-Feira da Paixão. Nas Minas Gerais antiga, as mulheres pobres já separaram as pedras pesadas que equilibrarão na cabeça na procissão. É preciso sofrer pra seguir Deus, caminhando devagar... Deus é uma pedra pesada que se carrega na cabeça. Alguns carregam a pedra do lado de fora, como as mineiras analfabetas. Outros carregam a pedra do lado de dentro, doloroso cálculo cerebral. Terminada a procissão, as mineiras põem a pedra no chão e ficam felizes de novo. Terminada a procissão, as pedras que vão do lado de dentro continuam doendo.
Hoje, Sexta-Feira da Paixão, os berra-bois berravam seus zunidos sinistros noite a dentro. Eram os uivos dos demônios que voavam livres nesses três dias em que Deus estava morto. Naqueles tempos o poder dos demônios era maior.
Sei que acontecia assim porque minha mãe me contou. E por falar em berra-boi -quem não sabe o que é berra-boi que o procure no dicionário- eu tenho um, pequeno, brinquedo, feito de bambu...
De qualquer forma, acreditando ou não, faria bem para a alma ouvir a marcha fúnebre de Chopin ou a segunda sinfonia de Mahler.
Rubem Alves, na Folha de S.Paulo.
Via Pava
15 abril 2009
Hoje é Terça! Sexta feira já passou!
Postado por César Chagas às 8:10 AM
Marcadores: Papo Cabeça
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2 comentários:
Esse sujeito chega a desconcertar a gente, de tão belo que escreve, não?
Dá vontade assim, tipo, de parar de se meter a escrever...
Mano, bacana seu blog. Parabéns!
Seguindo no e o mesmo Caminho! Abraços
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