03 junho 2009

Mais sutis


Texto curiosíssimo do Brabo.

Sem pretensões de conclusões ou nada... apenas uma leitura interessante:




– Minha idéia – disse o roteirista – é explorar uma espécie de diferente de totalitarismo. Algo insidioso e sutil, que evite por inteiro aqueles discursos dramáticos de ditador diante de uma multidão cega. A idéia na verdade é ocultar até o final a identidade do ditador.

– O problema é que todas as histórias de totalitarismo já foram contadas – observou o diretor, com cautela. – Nos nosso dias, depois da morte das ideologias, o público do ocidente desenvolveu um faro apuradíssimo para populistas e cafajestes. Quando o seu ditador começar a abrir as asinhas qualquer espectador será capaz de farejá-lo a quilômetros de distância.

– Hitler começou com alguma sutileza. Ele não aboliu as instituições imediatamente, mas criou organizações paralelas aparentemente inofensivas que acabaram engolindo as entidades oficiais.

– Hitler começou incendiando o edifício do Parlamento e anulando os direitos civis. Não há muito de sutil nisso.

– Devemos então ser mais sutis.

– Isso sem dúvida – o diretor puxou do bolso o maço de cigarros.

– Na Alemanha de Weimar a postura geral em relação à República era de desconfiança e ressentimento – disse o roteirista, inclinando-se para a frente. – As pessoas sentiam falta da segurança da monarquia e da autoridade unânime do Kaiser, e desconfiavam com a mesma intensidade da democracia que os vencedores lhes haviam aplicado goela abaixo. Eram gente acostumada a obedecer e venerar uma única figura carismática, e puderam assim sem qualquer trâmite abraçar a retórica de Hitler.

– Precisamente – o diretor puxou um cigarro, segurou entre os dedos e passou a batê-lo gentilmente na superfície da mesa. – Hoje em dia vivemos no extremo oposto do espectro. O que os alemães de Weimar desconfiavam da democracia, nós desconfiamos do totalitarismo.

– A não ser que, como na Alemanha de entre as guerras, as circunstâncias encontrem o ditador certo.

– Não, não. Tarimbados como estamos, nem mesmo a crise atual bastará para cairmos na armadilha de um Mussolini. Os direitos civis são agora religião, a única coisa sagrada que resta. O sujeito que quiser aboli-los será o primeiro a ser abolido. Fale uma palavra contra a democracia nesse seu roteiro, e você vai ver.

– E faz sentido que tenhamos criado esses mecanismos, porque historicamente foram as ações populares que restauraram periodicamente o equilíbrio de sistemas e governos doentios. Pense na Revolução Francesa, nas revoltas pela abolição…

– A própria Resistência – o diretor acendeu o cigarro e puxou um trago solene.

– Exato. As ações populares servem para equilibrar os governos, mas este é um processo cujos extremos não conhecemos. Imagine um mundo em que a participação dos cidadãos torne-se tão pulverizada que passe a reverter os pratos da balança.

– Não estou entendendo – o diretor reclinou-se para trás, equilibrando no encosto da cadeira o braço do qual pendia o cigarro. – De que mundo estamos falando?

– Imagine um mundo – prosseguiu o roteirista – em que o cidadão espere que o respeito que lhe prestam não seja um bem a ser adquirido pela sua postura pessoal, mas um serviço dos outros que cabe ao governo fazer cumprir. Um mundo em que a proliferação de direitos individuais acabe cerceando o bem comum, ao invés de promovê-lo.

Uma ruga de compreensão e assombro formou-se na testa do diretor.

– Num mundo assim – ele disse, – os pais processam a polícia pelos delitos dos filhos.

– Isso mesmo – celebrou o roteirista. – Uma sociedade litigiosa. Numa sociedade dessa natureza todos se tornam delatores potenciais de todos, precisamente como, digamos, no totalitarismo soviético. A diferença é que o que motivava um delator soviético era o fato de que todos os direitos haviam sido subtraídos de todos; numa sociedade litigiosa o que motiva o delator é que todos os direitos foram outorgados a todos. O negativo é agora positivo.

– E portanto mais atraente.

– E portanto irresistível. A vigilância é onipresente, não porque o governo está em todo lugar, mas porque o povo está.

– Se o meu direito termina onde começa o direito do outro – o diretor apagou o cigarro no canto da mesa, – onde há apenas direitos todos são plenamente cerceados por eles. Nada acontece.

– Nada acontece que não seja potencialmente litigioso – corrigiu o roteirista. – Ou seja, todos apelam continuamente para que o governo garanta os seus direitos.

– E o papel do povo numa democracia, que era policiar os excessos do governo, é revertido. O governo se vê obrigado a julgar os excessos do povo.

O roteirista recusou-se a acrescentar alguma coisa.

– Meu Deus – disse o diretor, puxando novamente o maço de cigarros do bolso.

– Precisamente – disse o roteirista.

Salve Paulo Brabo

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